segunda-feira, 7 de julho de 2008

Andros e Ydrousa - I



Ele deu mais um gole no vinho que enchia seu cálice dourado. Degustou-o minunciosamente, sentindo sua textura com a lingua rubra. Passou a degustar então, com os olhos, os belos rubis cravejados no cálice perfeitamente graálico e a compará-los em cor com os cachos de sua própria cabeleira. Essa admiração pela peça despertou n'Ela uma fagulha de gostosos ciúmes, fazendo-a se aproximar d'Ele com seus cachos flavos e seus seios nus de veludo. Ele riu, e passou então a degustar não mais o cálice, mas a escultura grega que era o corpo de sua companheira, dançando a visão de seu busto á seus lábios a seus olhos verdes de esmeralda incandescente. Compartilhou com Ela os restos de vinho que enroxeavam seus carnudos lábios enquanto dançava os dedos com uma suavidade sedosa pelos cachos d'Ela. Findaram o beijo e sorriram um para o outro numa alegria divina e homérica, mantendo em si próprios uma harmonia perene com o ambiente em que se encontravam.
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Estavam num gramado verdejante, do lado de uma roseira e de um pequeno fiacho de água pelo qual nadavam karpas. Ele se sentava encostado numa coluna jônica solitária e Ela se debruçava sobre ele, sustentando-se rosto a rosto com as mãos e os joelhos. Ali perto tocavam uma flauta e uma craviola em perfeito entrosamento, entoando exóticos sabores aos ouvidos dos presentes naqueles jardins onde os Dois se encontravam, derramando pelas flores e folhas das árvores melodias etéreas e improvisadas. Ele vestia uma longa e folgada camisa de manga comprida e tons flamejantes com calças negras de linho. Ela mantinha o busto nu, seus seios fartos eclipsados apenas por uma singela medalha da cor de seus cabelos pendurada á seu pescoço por uma fina corrente igualmente dourada, e vestia uma longa saia colorida de púrpura e verde.
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Perderam-se numa troca de olhares e sorrisos por alguns momentos, até que Ele voltou a sorver do cálice que repousava ao seu lado.
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"Quantos cálices de vinho você consegue beber sem enjoar?" Indagou ela.
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Ele riu, enquanto pensava na resposta. Podia ver o queixo delicado da outra refletido na superficie da bebida no cálice.
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"Por que se preocupa com isso?"
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"Tenho medo." Ela deitou-se em seu colo."E se nos cansarmos de todos os sabores, tornar-mo-nos fartos de todas as sensações e refletirmos por completo todas as idéias?"
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"Isso só acontece com seres humanos, não há por que se preocupar"
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"Mas como eles conseguem? Por que e como isso acontece? Não gosto disso. Por que não são como nós?"
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"É parte da natureza deles: Simplesmente são assim. Sua existência impermanente e breve os impele a estar sempre em mutação, nunca se satisfazendo por completo com nada que conquistam. Não sabem como parar e nem quando parar, e por isso seus impérios já nascem com a certeza de que algum dia restãrao apenas em ruinas e memórias. Por isso se casam e por isso são infiéis. Dançam entre o ter e o não ter como perfeitos valsistas"
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"Mas desconhecem a satisfação? Fazem isso por instinto ou têm consciência de sua natureza?"
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"Conhecem a satisfação melhor do que qualquer ser. Ela é parte permanente de seus sonhos e objetivos. Todo o seu mundo de idéias gira em torno de uma satisfação. Mas não conseguem mantê-la por muito tempo. Se a alcançam, logo enjoam ou a julgam insuficiente, e quando a perdem, voltam a desejá-la intensamente"
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"Sim! E se mantêm satisfeitos com ela tanto tempo quanto levaram para alcança-la, não é?"
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"Não apenas tempo, mas o quanto mais dificil, o quanto mais único e complexo for o caminho levado para atingi-la, mais tempo conseguirão mantê-la, mais tempo estarão satisfeitos com o que alcançaram. Se conseguem algo de forma fácil e sem esforço, logo descartam. Se colocaram no que queriam partes de si mesmos, se suaram e sacrificaram outros desejos por um maior, essa conquista há de satisfazer os humanos por mais tempo do que aquilo que lhes foi dado."
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Ela sorriu, orgulhosa da sabedoria do companheiro.
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"Tenho medo de enjoar de você. Você é tão intenso quanto o vinho e tão doce quanto o perfume das flores. Será que posso me fartar de você algum dia?"
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Ele riu, pousando as mãos sobre os cachos dela.
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"Espero que não possa. Mas se enjoar, lembre-se: Sempre haverão novos vinhos fermentando e novas flores nascendo. Não existem horizontes suficientes para medir os sabores, odores, as paisagens ou as canções que ainda estão para ser descobertas. Pense só em quantos vinhos diferentes ainda não tiveram suas uvas sequer colhidas ou suas vinhas sequer semeadas. Pense em quantos quadros ainda estão brotando no imaginário de seus pintores e quantas magníficas construções ainda permeiam os sonhos dos arquitetos, esperando para se tornarem realidade.Tanto aqui quanto no mundo dos humanos uma miríade de mutações, nascimentos ou renascimentos, poesias ou contos ainda esperam quem os admire e os louve. E para aqueles que vivem para sempre, bela, essa miríade é uma flor imortal."
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~Andros e Ydrousa - I