quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Andros e Ydrousa - II






O bosque era vasto e seco, inundado numa melancolia monocromática e esgotada. Os finos troncos das árvores se erguiam do tapete de folhas secas como agulhas, trazendo uma densa e aterradora sensação de infinto. Pesava sobre Suas cabeças a sensação de que o eterno outono que permeava aquele bosque havia de ser a última estação de toda a existência. O Ar estava impregnado com ecos de canções esquecidas, vozes líricas de sopranos espirituais, e o vento fazia dançar finos fiapos de uma fumaça suave que carregava em si sons marotos de uma flauta nostálgica e saudosista, pequenos sons de melodias ligeiras aqui e ali, agora e então.


*


Pararam de caminhar quando enfim chegaram a um templo de mármore branco, localizado tão aleatoriamente entre as mil árvores gêmeas daquele bosque e dotado de uma aura de existência tão hesitante, fraca, fantasmagórica e incerta que Ela não deixava de suspeitar que tal templo não se passava de um pedaço de algum sonho que havia se perdido no ambiente, solto ao acaso por alguma alma que o fantasiava em seu sono enquanto escorregava da vida, e ao ser misturado por acaso com um dos fiapos fantasmas de fumaça musical que por ali vagavam, ganhara uma projeção sólida e quase real naquele mundo.


*

Pois os espiritos que ali viviam eram nada mais que ecos, sonhos abstratos que ficaram para trás quando suas contrapartes vivas deixaram de dançar sob as folhas daquelas árvores. Eram existências rarefeitas e sutis, como temperos no fraquejo da matéria e da energia que não trazem gosto ao prato, mas o permeiam com um toque de sabor brilhante e suave. Viviam do passado, de memórias carcomidas ainda mais incertas, brincavam inocentemente com os vivos que por ali passavam sem saber que o abismo espiritual que os separava era tão angustiante e espectral e a fina linha que os ligava era tão falsa e falaciosa que aqueles que tinham consciência dessa distância espiritual tinham seus corações esmagados com dor e pena, suas almas derretidas em pranto de compaixão. Aqueles espiritos incertos e caóticos não sabiam de sua situação e da indiferença que toda a existência tinha para com eles e para com todo o bosque. O bosque, por si só, era a parte mais sólida e concreta de todo aquele plano fraquejante, que lentamente escorregava para a total inexistencia, o completo esquecimento, a nulificação perfeita de sua presença na história e em qualquer mundo que pudesse existir ou inexistir. Por isso a música que soava no ar parecia ao mesmo tempo afinada e desafinada, transpondo qualquer barreira harmônica que fazem os ouvidos gargalharem de prazer, por isso talvez o cheiro do Fim estivesse em cada pinha, em cada casca quebrada. Trazia, de novo, a percepção de que o Fim dos Tempos fosse acontecer num outono. Era por isso que Eles estavam aqui. Para evitar que a fina mas vacuosa boca do nada e do vazio que éons atrás cuspira tudo que existia agora começasse a sugar novamente sua própria criação.

*

Ele disse:


*


"Hora de reacender a chama deste lugar. Por tempo demais o Outono, a apatia e a perenidade tem encharcado esse bosque com estagnação. A poesia há de trazer novas cores, a música, novas vibrações para esse ar morto. O fogo há de restaurar a bela vida, e o vinho, as pomposas copas das árvores. Cada sílaba declamada será o rejuvenescer de mil células envelhecidas, cada fonema, a explosão de pura energia vital. Que esta fênix outonal por fim renasça no seu mais glorioso Verão!"


*


Ela sacou a rolha do vinho, e numa tocha Ele acendeu uma chama. O vento passou a soprar mais forte, intensificando a música que carregava, e o ar ficou mais denso, marcando o refrão de sua canção etérea. Ele deu o primeiro gole, direto da garrafa, e Ela, o segundo. O vinho escorreu copiosamente pelo queixo de ambos quando a quantidade que tentavam ingerir era demais para suas cavidades orais. Dançavam entre as árvores em círculos que riscavam o chão, faziendo a tocha crepitar, a música no ar se intensificar e a flauta do vento desatar a solar, até que Ele erguesse a garrafa no ar e tocasse o chão de folhas secas com a tocha flamejante, incendiando o interior do círculo que haviam marcado, e alto e em bom tom, declamasse:


*
"Venham a mim os versos derramados
Versos de ouro, versos eslavos
Venham a mim em vinho declamados
Versos de rubi, versos flavos
~
Venham como néctar da flor da mente
Escorram como mel pelos lábios quentes
Inundando os jardins do sonho rubro
Os jardins da primavera do alvo delubro
~
Sento-me agora quieto entre as folhas de outono
Folhas douradas, incensos de pinhos marrons
O Céu aureando os contornos majésticos do sono
Sono de sonho sereno que sente o sonho dos sons
~
E nas dores e nos odores das flores e dos amores eu sinto
Os sabores das sinfonias de cores de pensamentos de vinho tinto
Do vinho, do vinho, de tudo que é rubro e dourado e majestoso
Do rubi e do sol, das folhas de loureiro que coroam o corajoso
~
Que luta batalhas e não comete falhas e sem medo louva a vida
Como as auroras e as alvoradas, e toda a tarde pelo sol acometida
E ama e ama, incendioso e audacioso como o fogo e como a chama
Nobre e supremo, garboso em vestes de cores mil e cabeleira flama
~
E inimigo do inverno que o verão não matará
Sentará no alvo e no frio, plácido chorará
Até que o gelo corra aquoso pelo campo
Inundando de vida a vista que nascerá
~
E em rimas fúlgidas farposas e pobres
Agulhentas, faiscantes mas sim, nobres
Retocarão-se os rostos das tenras canções
Para que voltem a flamejar brilhantes emoções
~
Venham a mim os versos derramados
Versos de ouro, versos eslavos
Venham a mim em vinho declamados
Versos de rubi, versos flavos"
~Invocações
*


As palavras que vazaram de Seus lábios eram de um escarlate único das rosas que possuem os mais pontudos espinhos. Pareciam escorrer por todo o ambiente, penetrando cada fresta e adentrando cada pequeno orificio como se fosse pura água - ou puro vinho. Ela se encantava com o efeito que esse líquido poético trazia ao ambiente: Substituía os odores de madeira podre e fungos pelos mais sutis e avassaladores incensos de flores. Debaixo das folhas nasciam flores, nos ramos secos nasciam folhas. Até o próprio Sol pareceu olhar para aquele lugar com mais admiração, deixou cair por entre os galhos das altas árvores seus imponentes raios áureos. O branco templo que ali titubeava entre ser e não ser, encheu-se de ouro e orgulho ao decidir que ali ficaria. Logo ao lado, uma pequena nascente entre as pedras voltou a brotar cristalina água de pureza virginal, trazendo ao Ar uma humidez que tornava prazeroso o simples ato de respirar. E os corais que o Ar impregnavam de letárgicas canções mergulharam para um eterno refrão que entoava glória e felicidade. A flauta do vento ganhou coragem e se transformou numa brisa refrescante que agora dançava entre os cabelos d'Ela, cantando em seus ouvidos e lapidando naquele rosto Helênico um sorriso de adolescente. E não é que tão bela era a melodia e tão vibrante e surrealmente dourado havia se tornado o bosque e as entidades que o habitavam, que até n'Ele a flauta brincalhona fez brotar aquela fina e sutil faísca de ciúmes que é capaz de incendiar os corações?





~Andros e Ydrousa - II

Nenhum comentário: